11 de jul. de 2017

Falando sobre Carnaval - por Rachel Valença

             


         Rachel Valença (vestindo a roupa verde) ao lado da amiga, prestigiando a feijoada da Velha Guarda do Império Serrano


            Outro dia, por atrevimento, comentei uma postagem de um amigo carnavalesco sobre o atual momento de enfrentamento daqueles que cultuam a Cultura Popular no Brasil, carnavalescos e foliões,  o Poder Público e os "novos" Gestores Públicos espalhados pelas Capitais e Cidades Brasileiras. O comentário não continha nenhum conteúdo ofensivo e, tampouco, provocador. Apenas apontava questões de pertencimento, reflexão profunda e "juntar pessoas" para a defesa da nobre causa.
            Possivelmente, não tenha sido interpretado da melhor maneira, considerando a repercussão criada após as postagens de ambos os lados. Fato que, certamente agradou muito quem era o alvo inicial das críticas (no caso o Prefeito, avessa às coisas populares, e seus seguidores). Enfim...tem coisas na vida que EXIGEM UM RECUO ESTRATÉGICO de posicionamento. No meu caso específico e relembrando as falas do seu "Baixinho", meu pai, "Meu filho, quando não ajudas!! Não atrapalhe!! Mantenha tua boca com água e escute o vento...Costuma ser melhor para TODOS". Sábio o moço, não??
               Abaixo a transcrição autorizada de um texto da jornalista carioca Rachel Valença, amiga do saudoso Sérgio Peixoto e da turma do CETE. Se tiveres, um dia, oportunidade de visualizar o blog desativado (Baticumbum, da Alice Mendes e da Thais Freitas) na coluna "Na Arquibancada" eu já havia escrito algo que se aproximava do sentimento da simpática carnavalesca carioca. Acredito que, tinhamos as mesmas impressões mesmo em distantes domicílios. Obrigado, Rachel pela contribuição na luta pelo Carnaval do Brasil. 

              Vamos falar de Carnaval...

                Instalou-se nos últimos dias uma polêmica a respeito da redução da verba a ser repassada pela Prefeitura para as escolas de samba. Como todo mundo já escreveu sobre isso, não vou repetir aqui os mesmos argumentos que já foram apresentados a favor e contra as duas cidadelas em oposição. Mas leio, além dos excelentes artigos que defendem as posições de seus autores, os comentários dos leitores, nas redes sociais, concordando ou discordando deles. E me choca tremendamente o fato de as escolas de samba terem deixado de ter, nesta cidade, a popularidade de que desfrutaram um dia.
O desinteresse da sociedade pelas escolas de samba começa nas suas próprias quadras.
               Fiquem tranquilos: não vou falar do meu tempo. Este já ficou pra trás há muito. Mas quero falar da geração das minhas filhas, de seus amigos e colegas que enchiam nossa casa e que formaram um grupo animado que até hoje se encontra, assiste aos desfiles, desfila, se reúne o ano todo para ver desfiles e cantar samba. Não eram exceção: nos colégios, mesmo os da Zona Sul, todo mundo tinha um time de futebol e uma escola de samba do coração.                              Os sambas tocavam no rádio, muito, a toda hora, desde antes do Natal. As compras na Saara tinham a trilha sonora dos sambas-enredo. Os dirigentes de escolas de samba eram figuras interessantes que, reunidos em mesas-redondas na TVE e na TV Manchete logo após o Carnaval para comentar o resultado, nos mantinham acordados até muito tarde, ouvindo suas discussões cheias de humor, alfinetadas e autenticidade.
              Difícil imaginar que naquele momento um prefeito ousasse desmerecer o desfile das escolas: tenho a sensação de que a população se levantaria em defesa de algo que fazia parte de seu cotidiano. Hoje tudo ficou muito maior, mais bonito, mais organizado, mais “limpinho”. Mas será que é isso que as pessoas querem? A maioria da população elegeu um prefeito evangélico, um homem com postura bem clara e definida. Observo, sem surpresa, que a maioria da população está de acordo com uma definição de prioridades que coincide com o perfil do candidato.
             Sem que a maioria tenha se dado conta, o conjunto da sociedade já vinha se afastando das escolas de samba bem antes de Crivella.
Ao tentar reverter isto e protestar contra a medida, os dirigentes atuais convocam o povo a defender suas escolas de samba. Mas, pera aí: é agora que se lembram do povo? Do povo que não tem aparelho de fax em casa nem dinheiro para comprar ingressos para o desfile? Do povo que fica fora das festas suntuosas que a entidade representativa das escolas do Grupo Especial promove? Do povo que só tem acesso à Cidade do Samba na qualidade de trabalhador informal, e ainda sujeito a calote?
              O desinteresse da sociedade pelas escolas de samba começa nas suas próprias quadras, onde se ouve funk e outros ritmos similares, onde o ingresso é caro também, onde se vê todo tipo de injustiça, com pessoas que nunca frequentaram a escola recebendo sua fantasia, sua camisa, seu terno para desfilar enquanto do sambista se exige presença a todos os ensaios (e ainda assim pode ficar sem nada). O afastamento do povão vem de ser obrigado a ver pela TV a pista cheia de gente credenciada atrapalhando os sambistas, vem de ter a certeza de que o desfile a que assiste não custou nem a metade do dinheiro que a escola recebeu, que os ingressos do Setor 1, que deveriam ser para distribuição gratuita, foram vendidos.
           O que merece nossa reflexão é esse divórcio entre o povo do Rio de Janeiro e suas escolas de samba.
           Tudo que diz respeito às escolas de samba se tornou caro e difícil, nada é a preço popular: ganhar, faturar, lucrar são as únicas preocupações. Feijoada em quadra de escola de samba é programa para rico: ingresso, feijoada, mesa, cerveja, tudo caro. Final de samba enredo tem ingresso de preço mais alto, a mesa sobe de valor, tudo proibitivo. Os compositores, então, vão à ruína com os altos gastos que são obrigados a fazer.
            Por tudo isso, vamos ouvindo frases como: “Eu era compositor, mas desisti de compor porque a disputa está muito cara”. “Eu era ritmista, mas larguei porque era muita exigência”. “Eu desfilava, mas cansei de ouvir grito de diretor de harmonia”. “Eu ia muito à quadra, mas hoje não tenho mais grana para isso”. “Eu era passista, mas tive de deixar porque os ensaios terminavam tarde e eu trabalho cedo”. Ou simplesmente: “Eu assistia ao desfile todo ano, mas deixei de ir porque é muito roubado”. Quando ouço frases como essas, sinto uma dor no coração. Porque, sem que a maioria tenha se dado conta, o conjunto da sociedade já vinha se afastando das escolas de samba bem antes de Crivella pensar em ser prefeito. Ao reduzir em 50% a subvenção destinada às escolas, ele não as torna menos amadas. É duro reconhecer que nós é que, ao longo do tempo, fomos cometendo sucessivos erros que resultaram no afastamento da sociedade, a ponto de hoje pouca gente se indignar com a redução da verba.
             Mais do que esta disputa que de uma forma ou de outra se resolverá, o que merece nossa reflexão é esse divórcio entre o povo do Rio de Janeiro e suas escolas de samba, que a disputa foi capaz de evidenciar dolorosamente.
            
Rachel Valença. Carioca, historiadora, filóloga e jornalista. Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense. Coautora do livro "Serra, Serrinha, Serrano: o império do samba". Pesquisadora do projeto de elaboração do dossiê "Matrizes do samba no Rio de Janeiro", para registro do samba carioca como patrimônio cultural do Brasil. No Império Serrano há 40 anos, foi ritmista e vice-presidente da escola.