10 de jan. de 2017

Era só mais um Silva - por Rafael Silva

No final da década 90, Edgar Scandurra (conhecido como guitarrista da banda Ira) deu uma entrevista para a MTV onde dizia algo como “No Brasil, a cada 20 anos a gente descobre que coisas muito boas foram feitas na música a 20 anos atrás”. Essa frase ficou marcada na minha memória, apesar de eu não ter encontrado qualquer referencia a ela na internet.  Tenho pensado bastante nela recentemente acompanhando amigos discutindo qual o tipo de samba mais “verdadeiro”, mais “legítimo” ou como o samba e o pagode de hoje na maioria das vezes “empobrece” a música. Será que realmente temos dificuldade em reconhecer mudanças musicais potentes quando as vemos surgir? Será que há uma tendência entre os críticos de reagir negativamente aos trabalhos que propõe releituras e não seguem as tradições à risca?

        Olhando em perspectiva, toda a história do samba foi marcada por essa tensão entre inovação e conservação. O que se entendia por samba, partido alto, choro e outros termos relacionados no fim do século XIX e começo do XX não é o mesmo que se entende hoje. Os próprios padrões rítmicos que hoje tomamos como característicos do samba “tradicional” (que o musicólogo Carlos Sandroni chamou de paradigma do Estácio em seu clássico livro Feitiço Decente) foram uma inovação em relação aos sambas gravados até a década de 30, mais ou menos. A bossa nova foi a variação dos anos 50-60, o pagode dos anos 80 e 90 e, finalmente, o pagode contemporâneo são desdobramentos dessa tensão. Todas essas variações seguem vivas nas mãos de grupos de músicos e apreciadores. O surgimento delas não significou o fim ou o apagamento delas exceto por curtos períodos (como aquele que fez João Nogueira criar o Clube do Samba). Essa tendência ao surgimento de movimentos inovadores não é exclusividade do samba e nem é novidade.

         A máxima do filósofo grego Heráclito (535 a.C. - 475 a.C.) que afirma que “A única constante é a mudança”. soa bastante reconfortante e motivadora quando a pensamos em uma perspectiva geral (a família, o trabalho, etc.), mas é curioso refletir sobre como mudanças musicais são conflituosas e como esses conflitos são constantes na história da música. A música está presente em absolutamente todas as comunidades humanas que se tem notícia e eu diria que uma coisa é certa: sempre haverão pessoas dispostas a realizar mudanças naquilo que se entende por musicalmente tradicional e sempre haverá pessoas resistindo a essas mudanças. Desse conflito, pode sair uma nova tradição que venha desbancar a antiga em popularidade e/ou legitimidade, podem surgir outras tradições que se distanciam da original ou mesmo essas mudanças podem não repercutir, mas não há indícios confiáveis de que esse tipo de conflito um dia acabará. E desde o momento em que as práticas musicais foram se desprendendo dos rituais cotidianos essas mudanças são cada vez mais constantes.

            Antigamente, a música cumpria um papel muito mais ritual e mais conectado simbolicamente com o cotidiano das pessoas. Haviam as danças para festejar as colheitas, as canções para o menino que entrava na puberdade, as músicas de rituais religiosos, etc. Ainda que sempre tenha havido pessoas criando música (compondo, improvisando, arranjando, fazendo variações), o repertório compartilhado por uma comunidade precisava de algumas gerações para sofrer mudanças substanciais. Isso já não acontece mais nas culturas urbanas contemporâneas por uma série de razões que não dou conta aqui de explorar. O próprio samba dito rural no Rio de Janeiro (o que se praticava na casa das tias baianas) estava muito mais ligado à religiosidade (jongo, candomblé e outros) do que os sambas urbanos, então esse movimento não nos é estranho.

          O que importa ter em mente é que tudo que é “de raiz” hoje foi algo subversivo um dia e que essa subversão foi combatida por algum grupo, como foi Donga e Pixinguinha ao serem acusados de compor choros fortemente influenciados pelo jazz no fim da década de 20, a bossa nova que tomou boas pauladas de muitos críticos por sua batida simplificada e com letras que beiravam a infantilidade e o pagode que fez significativas alterações na formação instrumental dos grupos e no vocabulário harmônico e melódico “descaracterizando o samba”. Em suma, trata-se de grupos brigando para ver quem tem mais legitimidade para falar o que se deve e o que não se deve fazer em música e o que se deve e não se deve ouvir como música. Mais do que isso, como, para cada tipo de música corresponde um tipo de sociabilidade, um modo de se vestir e se portar (você identifica um pagodeiro, um rapper e/ou um roqueiro quando os vê na rua, não é?), no fim das contas, talvez esse conflito constante não tenha uma relação tão direta com música. Talvez esse conflito fale mais sobre pessoas querendo controlar as outras do que qualquer outra coisa. Talvez?? Quem sabe?