22 de jan. de 2020

Sobre a troca de saberes e o dever que temos, por Fernando Baptista





Imagem do acervo pessoal - Fernando Baptista - Jornalista, pesquisador e incentivador da Cultura Popular - atual Assessor de Comunicação da Prefeitura de Cruz Alta - Defini-se um BRASILEIRO simples que transita pelo samba, nativismo, do Norte e do Sul do País, da Lara e Venâncio. Da poesia de Aureliano a João Nogueira..

Quando o grande Edinho Silva me convidou para escrever algumas palavras sobre o samba para o Armazém do Seu Brasil fiquei muito honrado. Logo me veio a mente que a vida é uma eterna troca. Uma eterna contribuição entre os seres. Ao menos a meu ver. Troca de saberes, culturas, ensinamentos, experiências.
Tudo que nos é passado, de valia, temos que repassar. Ou então dar em troca algo novo. Que o próximo não saiba. Algo que ele ou ela, o amigo, ou até o desconhecido, não conheça.
Falo isso ao lembrar das ricas histórias sobre o carnaval que meu tio Caio Padilha, mecânico de mão cheia, boêmio de verdade, morador da Joaquim Nabuco, ao lado de onde nasceram os Imperadores do Samba, me deu em troca de um bom bate papo no Balneário Pinhal, com brisa leve e um samba novo trazido por mim. Pois o Padilha, malandro dos bons, me passava a importância, o que significava para ele, e para tantos, o carnaval, as suas escolas, Imperadores, Bambas, Praiana, os seus baluartes, mestres como Cláudio Barulho, Wilson Ney, Neri Caveira, Nêgo Izolino, Medina, Martinho da Vila, Neguinho da Beija Flor, entre outros. Entre um gole e outro escutávamos os bambas. Lp's e depois cd's.
Anos mais tarde comecei junto com outra referência para mim, meu amigo Marcelo Chala, a ir até estes mananciais de cultura que são as quadras das escolas de samba. O Chala é Bambista, filho de Bambistas e Portelense. Pois bem. Fomos a várias quadras, muitos ensaios, eu passando um pouco do conhecimento repassado pelo Padilha e ele me contando o muito que sabia e que soube através de seu pai, o saudoso Mourão, fundador do histórico Folhetim do Zaire. Tudo na base da troca de informações, saberes.
E aí chegamos ao episódio em que estávamos em uma destas quadras. E que quadra. Lá estávamos nós na casa dos Imperadores do Samba. Eu e outro irmão que vocês vão saber quem é em seguida, nas próximas linhas. Quadra cheia. Ensaio pegado. Mestre Neri Caveira conduzindo a Sinfônica. Naquele dia levei comigo outro apaixonado por música, cultura, samba e carnaval. E por uma boa batucada. Por percussão. Iglenho Burtet Bernardes. Conhecem? Pelo nome de batismo alguns sim. A maioria não. A maioria o conhece como Porã. DJ, radialista, jornalista, professor, boa praça, gente do bem. Porã ficou enebriado de emoção, em êxtase, ao ver aquela quadra. Sentiu a atmosfera, o clima. Era estreante naquele templo do samba gaúcho. E não se conteve. Ao ver um componente da bateria, exausto, largar o talabarte pediu para tocar. O incauto não conseguiu dizer não diante de tamanha insistência. Ou ficou compadecido ao ver aqueles olhos brilhando. A cara de pidão. Talabarte posto, baqueta na mão, olhar fixo no mestre Neri e lá ia ele realizar o sonho de ser integrante da Sinfônica. Nem que fosse por alguns minutos. Por um ensaio.
Ia...
O olhar fixo no mestre. Mas cadê o mestre? Neri, experiente, sabia de cor e salteado quem era quem naquela bateria. Naquela família. E Porã ainda não era daquela família.
E como um Usain Bolt Neri desceu do seu trono, trono pois Neri era tal qual um rei negro etíope de cetro na mão, e em segundos estava ao lado de Porã proferindo a célebre frase que nunca saiu da cabeça do meu amigo e da minha lembrança: tu não és da bateria! Um Porã quase choroso tirou o talabarte, rodeado de olhares, risadas. Sobraram minhas palavras de consolo e a ida até uma das copas da quadra. Afogar a mágoa no copo.
Notaram que eu disse que Porã ainda não era daquela família nas linhas acima? Não era, mas ia ser. Anos depois Porã não só virou surdo de segunda da Sinfônica, Mestre Brinco dizia que ele era melhor no contratempo do que no tempo, como se tornou um dos grandes e queridos ritmistas da Sinfônica. Levado pelo saudoso Mestre, cria e discípulo de Neri, me contou, em troca, que ali encontrou amigos, irmãos, uma família. Viu a importância da escola de samba para toda aquela gente. Viu que escola de samba não tem escola no nome fortuitamente. Viu que ali era lugar de pertencimento. Notem que apesar de batida a frase é elucidativa. Em uma escola de samba brancos e negros estão em pé de igualdade. Assim como pobres e ricos. Até muitas vezes o rico fica relegado ao papel secundário. Sai em uma ala qualquer. E a menina da comunidade é a rainha, o destaque. Viu que aquele espaço é lugar de resistência. Viu que tudo aquilo que me foi passado pelo Padilha e que eu passei a ele era mais do que verdade. A troca havia sido feita. E segue sendo feita.
Já fez sua troca hoje?