22 de ago. de 2018

Cordas, cadeiras, índios e muambas







Acervo do pesquisador



Este ano eu vou sair de arlequim e você vai ser minha colombina
pouco importa se choras, pierrô e a fantasia que irei usar
de um rei, pirata ou feiticeiro
na maravilha que feijó criou
quero extravasar de alegria o mestre-sala da minha ilusão
à noite, cai a noite, a flor criança e me deixa mergulhar
num deslumbrante azul celeste
cenário que os bambas vêm mostrar
com o pé no mundo do meu faz-de-conta
o pretinho na mesa do pobre não pode faltar
se prá morar sai caro e o meu lazer é raro
o jeito é botar água no feijão
não sei se eu saio na tribo ou se brinco na banda
se um dia vou ser o passista da escola de samba
fala pandeiro e tamborim na marcação
olha o samba chegando de novo
que é para o meu povo pegar o refrão
bota partido no samba também sou bamba
o samba sem ele não pode ficar

Jorge Ramos

São gratificantes as lembranças do Carnaval de Porto Alegre dos anos 1970, 1980 e 1990. Quando criança, caminhar com a família, pela Avenida João Pessoa, por exemplo, quando o desfile era lá. Chamava atenção aquela multidão, cheiro de churrasco de rua no ar, fantasiados passavam apressados e música nos rostos e bocas. O samba de Porto Alegre tem outra cadência, outra estrutura, isso lhe dá uma especificidade muito especial. As pessoas que não estavam nas arquibancadas eram em número muito maior, milhares circulando pela madrugada, velhos, jovens, crianças. As que levavam as suas cadeiras de praia e ficavam no “setor da corda”, então – antes e depois das arquibancadas – eram incontáveis. Não tinha hora para o bloco ou escola de samba entrar e sair. Ficava-se a noite esperando e de repente, acontecia.
Ao contrário do discurso discriminatório de que “Porto Alegre não tem carnaval”, a cidade tinha vários carnavais. Antes de nós, teve na João Alfredo, teve na Borges. Tinha carnaval na zona norte e em muitos outros lugares. Carnaval de blocos, sociedades e salão. No fim dos anos 70 e anos 80, creio eu, a cidade teve um dos melhores carnavais de salão do país. Quem não gostava da rua podia se esbaldar no Verde e Branco, Vermelho e Branco, Municipal e praticamente todos os clubes da nossa querida capital tinham não um, mas muitos dias com muitos bailes de carnaval.
Na Santana, a Dona Maria Bravo garantiu por décadas um carnaval democrático. Lá não tinha cobrança de ingressos, mal tinha um coreto patrocinado por algum comerciante do bairro e a regra era clara: em algum momento, sabe-se lá quando, após o desfile oficial, as escolas virão aqui. E iam. Passar na Santana e ser ovacionado pelo público era tão ou mais importante que ganhar o desfile oficial. E na Santana, a mesma cena: famílias inteiras com cadeiras e sacolas cheias de pastel, sucos, cervejas e tudo o que se precisa para uma noite de festa na rua.
O tempo passou e, da João Pessoa, os desfiles migraram para a Perimetral. Tão fantástico quanto as escolas era a decoração. Chegou a ter um ano em que o piscar das luzes acompanhava a batida de cada bateria de cada escola. Dois ou mais dias, antes de abrirem, nas bilheterias já havia gente acampada. Gente da periferia vinha de longe e teria seu momento de centralidade. Eram os quatro dias em que o centro da cidade era deles. Como sempre afirmam os sambas: quatro dias de reinado para os que não são nada. Enquanto grassava o discurso da cidade sem carnaval, por puro preconceito, viveu-se por muitos anos, carnavais antológicos com milhares de pessoas nas ruas. Carnavais que não eram somente de escolas de samba. Carnavais das tribos. Ah… essa coisa gaúcha e porto-alegrense que nos diferenciava de todos os outros carnavais. Aqui, os negros fizeram tribos indígenas no carnaval, para falar de raízes culturais, liberdade, luta por seu povo.
Porto Alegre tinha duas Muambas. O que hoje é chamado de ensaio técnico, era o momento de afinar as baterias e ver o povo cair na folia sem oficialismos. Tinha a muamba oficial e a outra patrocinada por uma rede de comunicação que, à época, era administrada por seu fundador que tinha alguma preocupação social. Hoje, a família toca os negócios. O social ficou na lembrança. Rua do Perdão do Pernambuco, as bandas… As ruas com gente que trabalha e sorri. Apesar da vida que pouco sorri para essa gente.
Pois lá pelos anos 1990 o carnaval de Porto Alegre começou a desaparecer. Grupos organizados não queriam o carnaval na Augusto de Carvalho, não queriam sambódromo, não queriam a quadra da Imperadores na Ipiranga. Pois bem, a prefeitura apresentou um projeto para que o sambódromo fosse quase atrás do Beira-Rio. Mobilização dos mesmos grupos, mesmos atores, mesmos argumentos. Chegaram a afirmar que o sambódromo desvalorizaria os imóveis.
Em abdicar de tomar para si e definir um projeto de cidade que contemple a sua população em sua diversidade, Porto Alegre vira a cidade planejada pelo mercado. Quem tem dinheiro planeja e executa. Quem não tem, a periferia é seu lugar. O povo do carnaval acreditou numa melhora na ida para o Porto Seco, docemente. Perdeu-se o protagonismo da festa. Erra-se também quando, em algum momento, tentamos copiar outros carnavais, como o carnaval do Rio e começamos a acreditar em escolas com carros enormes, estrutura permanente de cimento, etc. É preciso repensar se não é hora de voltar para onde o carnaval jamais deveria ter saído: o centro da cidade.
Por quê? Porque ocupação de espaço público pela população é muito bom para a cidade e a cidadania e muito ruim para quem quer transformar a rua num negócio para o lucro. O lugar do carnaval, o lugar das pessoas confraternizarem deve ser o Centro.
                 Por Arthur Bloise, amigo do Armazém


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